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Horácio encostara-se a um dos prédios da rua e, enquanto esperava que Pedro se afastasse, viu Manuel da Bouça arrastar-se calçada acima, por entre a multidão que vinha do cemitério. Também aquela imagem do velho céptico o molestou. E, então, pôs-se a olhar para os outros homens, vestidos de negro, que passavam na sua frente, caras que lhe eram familiares, operários da Aldeia do Carvalho, e da Covilhã, que ele conhecia da hora da saída das fábricas, dos diálogos no Pelourinho, das próprias ruas onde habitavam. À medida que iam passando, ele evocava as idéias, as embrionárias ansiedades que tinha ouvido a cada um deles, desde que deixara o cajado de pastor e viera trabalhar para as fábricas. E cada vez se apagavam mais, nos seus olhos, as imagens de Pedro e de Manuel da Bouça e cada vez ele se sentia mais confortado, mais confortado cada vez, por verificar que quase todos os que passavam na sua frente pensavam como Marreta e como ele próprio pensava agora.
Viu Tramagal, Ricardo e João Ribeiro a descerem a calçada — e juntou-se a eles. Ricardo disse-lhe:
— No sábado, à noite, vamos fazer uma reunião, aqui, na Covilhã, em casa do Ildefonso. Precisamos de continuar... Compreendes? Precisamos de continuar... Não faltes!
— Lá irei —respondeu. E voltou a sentir-se menos abandonado do que quando vira, momentos antes, enterrar Marreta e muito menos do que quando, há anos, entrara para a fábrica. Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros — ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperança.
Ao chegarem ao começo da Rua Azedo Gneco, onde ele vivia, Horácio despediu-se. Mesmo ao andar sozinho na viela solitária, parecia-lhe que não ia sozinho.
Quando chegou a casa, Idalina entoava uma cantiga monótona, para adormecer o filho. Mas o Joanico, ao ouvir ranger a porta e ao vê-lo entrar, abrira muito os olhos e sorrira-lhe.
Idalina estava com uma expressão triste e perguntou-lhe:
— Então? Tinha muita gente?
— Tinha.
O Joanico continuava a sorrir-lhe. Ele sentiu um súbito desejo de pegar no filho e de o acariciar. Vencendo os protestos de Idalina, agarrou no Joanico, levantou-o do berço até à altura dos seus olhos e beijou-o:
— Seu maroto, que não quer dormir! — E voltando-se para a mulher: — Vamos a ver se, na Páscoa, podemos ir a Manteigas, mostrar o pequeno aos avós...
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(Ferreira de Castro, A lã e a neve: romance)
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(Ferreira de Castro, A lã e a neve: romance)
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