Saturday, January 29, 2011

Oitenta a cem mil combatentes


(...)
A residência do Humbe, a fortaleza e as suas casas dos comerciantes, eram encontradas incendiadas, tendo o incêndio tido lugar por ocasião da retirada de Naulila. Acampadas as tropas no Humbe, no terreno comprehendido entre a fortaleza, principiaram as apresenções de gentio, notando-se porem que este se fazia representar quási exclusivamente por velhos, mulheres e crianças (todos com aspecto esquelético). Os homens válidos tinham passado o Cunene, procurando refugio no Cuamato e no Cuanhama.
(...)
O gentio revoltado era aguerrido e muito numeroso (Cuanhama, Cuamato, Evale, alguns Cuanbis, e foragidos do Humbe e Dongoêna), segundo dados colhidos em autoridades, como Eduardo Costa e João de Almeida, e as informações por mim obtidas, o seu efectivo total deveria orçar por uns oitenta a cem mil combatentes e era necessário ter em conta que tinham o moral muito levantado pela retirada das nossas forças após os acontecimentos de Naulila, e tinham sido em grande parte instruídos pelos alemães, dando-se ainda a circunstancia de à frente da coligação se encontrarem os Cuanhamas, que nunca tinham sofrido o nosso dominio e cujo estado de civilisação já era, segundo todas as fontes de informação, muito apreciável.
(...)


([General] Pereira de Eça, Campanha do Sul de Angola em 1915. Lisboa, Imprensa Nacional, 1921 (109 páginas). Excertos das páginas 79 e 80)

*

(...)
Nada se sabe das reacções de Mandume e de Sihetekela à aproximação dos Portugueses. Pereira de Eça calculava que as forças potenciais dos seus inimigos podiam chegar a 80 ou 100 000 homens (*), o que mais uma vez revela o amadorismo dos seus serviços de informações (**). O general queria actuar antes da estação das chuvas. Acumulou, pois, no Humbe as maiores forças militares que em Angola foram reunidas antes de 1961.
(...)

(*) Pereira de Eça, Campanha do Sul..., op. cit., p. 23.
(**) Alguns meses antes, o Padre Keiling, mais outro missionário e quatro funantes tinham permitido estabelecer, a 25 de Março de 1915, um plano de ataque ao Cuanhama, cuja população avaliavam em 200 000 almas com 15 000 espingardas, sendo 8000 destas armas finas. À fé dos seus depoimentos, os oficiais do Estado-Maior não previram o ataque frontal dos Ovambos, enganando-se assim redondamente. Em contrapartida, fizeram a lista dos lengas e conselheiros de Mandume «a eliminar». Dos quatro nomes citados (Injucuma, Augusto — conselheiro de Mandume e antigo serviçal no Lubango —, Kalolo, ou Calola, e Aissongo), só o terceiro surgiria em Agosto de 1915 como a alma da resistência. Mandume não devia ser morto mas sim capturado. A. H. M. Caixa 11, N.° 27. Subsídios para a acção no Cuanhama.

Wednesday, January 26, 2011

M. C. Escher: escadarias que ascendem e descendem... cubos com as arestas cruzadas... água que desce através de um canal...

Ascending and Descending 1960 Lithograph

Stars 1948 wood engraving


Waterfall 1961 Lithograph

Images from the Gallery of The Official M.C. Escher Website

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Reli a lista. Reli-a em voz alta, pausada. Não podia ser, era uma coisa que não podia ser e, no entanto, ali estava, sólida e absurda, como os famosos Mundos Impossíveis, desenhados por M. C. Escher: escadarias que ascendem e descendem ao mesmo tempo, cubos com as arestas cruzadas, água que desce através de um canal, num estranho edifício, até cair, em cascata, em direcção ao mesmo ponto, lá em baixo, ou lá em cima, de onde havia partido.
Que lindo, filha. Parece-me um milagre.
(...)

(José Eduardo Agualusa, Milagrário Pessoal)

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Vídeo
Fallingwater
A CG movie featuring the Frank Lloyd Wright masterpiece, by Cristóbal Vila (www.etereaestudios.com).

Sunday, January 23, 2011

O olhar de Cachipaleca


B — O ESMAGAMENTO DOS HUMBES
O primeiro recontro que assinala a reconquista do Humbe deu-se a 29 de Maio de 1915 (...). O superior de (T)Chipelongo, o Padre Ballet, que durante todo o tempo em que o Sul esteve abandonado pelos Portugueses foi o único branco do Humbe, foi pedir socorro ao batalhão de fuzileiros navais que chegara a (T)Chicusse, no limite do Humbe. Os Humbes foram repelidos por um destacamento (uma centena de homens) da Marinha (...) e de landins (caçadores moçambicanos). Foram mortos três chefes, parentes do soba do Humbe, e a resistência foi pouco eficiente. Seria nula um mês depois, quando Pereira de Eça mandou fuzileiros navais reocupar o Humbe, que estava completamente arrasado. Já nem havia água nas cacimbas ao longo do Caculovar e não havia quem enterrasse os cadáveres de animais e homens esfomeados. O Humbe foi, portanto, atingido a 7 de Julho sem resistência nenhuma.
Pereira de Eça mandou igualmente devastar a Dongoena por sete oficiais, 93 cavaleiros e 36 boers que mostraram bem o seu «valor» matando cerca de 600 Dongoenas (...), entre eles o soba Cachipaleca, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Do Humbe, da sua residência, da fortaleza e das casas comerciais tinham ficado apenas paredes calcinadas. Os homens válidos tinham-se refugiado no Cuamato e no Cuanhama. Dos Alemães (...) não havia, evidentemente, vestígios, pois já se tinham rendido ao general Botha. A guerra seria, pois, contra o «gentio» e, enquanto se esperava para o defrontar, aplicou-se uma política de terror (*).

(*) Mesmo na retaguarda e em região «amiga», as requisições de gado equivaliam a pôr à fome os Ngambos. Em data que não encontrámos, foram chacinadas uma soba ngamba e a sua gente, que se encontravam no extremo limite das forças e não podiam fornecer carregadores nem carne. Um simples acidente nos Gambos, onde pereceram de fome 10 000 pessoas. Carlos Roma Machado de Faria e Maia, «Colonização do planalto da Huíla e Moçâmedes», B. S. G. L., 36.ª série, n.° 10-12, Outubro-Dezembro de 1918, p. 302.

(René Pélissier, História das Campanhas de Angola – Resistência e Revoltas 1845-1941. Volume II, páginas 242,243. Editorial Estampa, Lisboa, 1997)


(...)
Dormi tranquilamente, bem certo que o Cachipaleca não tornava a fugir; demais havia a garantia do Manuel ficar no quarto de alba e ordem de nenhum preto se aproximar do prisioneiro.
Na manhã seguinte, já vim encontrar o desgraçado com o laço de couro trançado no pescoço e passado por cima dum dos grandes galhos da árvore frondosa do terreiro exterior, amarrada a ponta na argola do selim de um dos cavalos mais fortes do esquadrão.
Bicho feroz e raivoso, leão que fosse ou palanca vermelha gigante, não o prenderiam com maior cautela e segurança. As mãos cruzadas atrás das costas era uma tira de couro bem testa que as manietava. Nos pés, acima do tornozelo uma soga amaciada com tutano para não gretar, só permitia o movimento de se agachar, e tão justa a puseram que fazia vincos fundos provocando-lhe assim aturado suplício.
Ordenei logo que lhe desamarrassem os pés para os poder erguer à vontade, e que lhe dessem de beber. Emborcou sofregamente uma grande cuia de água que lhe deve ter causado violento mal-estar, pois o suor lhe molhava o corpo todo. Depois mandei-lhe perguntar o que é que mais queria antes de morrer. Só desejava despedir-se das suas duas mulheres e ver os dois filhos pequenos que tinha delas — um molequito dos seus cinco anos e uma cucama que andava na mudança de dentição. Veio o grupo acompanhado por dois boers que permitiram a despedida a uma distância de poucos passos. E aquele homem forte e altivo, corpo de atleta, deitou à sua pobre e amedrontada família um olhar sereno, carinhoso. E foram tão meigas e de tanta ternura as palavras que lhe disse, que havia de comover o coração mais duro, não fora o ódio e vingança presidirem o drama de que, nós outros, éramos autores e também actores.
Nós não nos apiedámos da desgraça e da dor que roubavam o chefe de uma família notável e prestigiosa na tribo, herdeira, talvez secular, do poder e honras do sobado da Dongoena. Só nos movia a desforra pela morte dos nossos e dos que tinham ficado ao nosso serviço, e que, por sua lealdade ao Manipulo (1), foram sacrificados.
(...)
Quando aquelas duas mulheres, tão a dizer com as do drama do Calvário, se afastaram para o fundo do terreiro e ia consumar-se o suplício, o Cachipaleca olhou a assistência com ar de desprezo e para além da morte, e olhou-me a mim fixamente. E então eu vi que o seu olhar tinha a grandeza e o brilho ofuscante que iluminou o remorso na noite de Caim.
(...)

(1) Maniputo: «o rei de Portugal».


(João Sarmento Pimentel, Memórias do Capitão, capítulo "A FERRO E FOGO", páginas 166 e 167)

Thursday, January 20, 2011

Começava o monstro, que se chama guerra...

(...)
Aquele barulho da corrida dos cavalos, os palavrões e berros da soldadesca, despertavam os habitantes de Moçâmedes até os de sono mais pesado.
Vultos em trajes de dormir abriam as janelas, espreitavam e benziam-se, pensando que eram demónios à solta invadindo aquela terra pacata. E logo corriam as vidraças de guilhotina, cerravam as persianas, os amedrontados, os estremunhados moradores, não fosse mau olhado do bruxedo trazer-lhes biliosa fatal, maleitas, intermitente da mabata, picada de cobra venenosa.
Mas na passagem pela Viela das Pombas, os tropas viram abrir-se uma porta e de candeia na mão, uma preta nua, dizia-lhes: «Vem cá meu bem».
Que fossem para o diabo cavalos, muares, o raio que os parta. O serviço era outro. Famintos vinham eles daquilo que a Vénus cor de ébano lhes oferecia logo ali e como recompensa dos trabalhos e perigos passados a bordo do «Cabo Verde». A nova correu célere e à porta do lupanar formou-se bicha como de entrada pró cinema em dia de estreia! Cada um deixava «uma croa», alvitraram os primeiros.
Quando a rapariga se quis levantar, isso sim! a fila já ia até à beira da esteira e um qualquer soprou a luz da candeia. Um atrás do outro, não se soube quantos ela atendeu ainda com vida, que o resto já fora depois de ter morrido por tanta gente a passar à fieira!
De manhã, quando as mucamas dos outros chalets se levantaram, deram com a porta aberta, um cachorro a lamber o sangue que tinha escorrido da esteira até à porta e a rapariga de boca escancarada e barriga pró ar já tão inchada como se estivesse prenha.
Desataram numa gritaria que parecia o fim do mundo. Acudiu toda a negrada do arrabalde e um cipaio da ronda foi dar parte à Polícia.
Escândalo tremendo, inquérito, conselho de guerra, e tudo arquivado por falta de testemunhas e provas contra este ou aquele, pois que foi uma centena ou mais a cometer o crime de assassinato. Instrumento de agressão, nem vale a pena explicar para a causa mortis ser justificada.
Começava o monstro, que se chama guerra, a dar provas da sua hediondez.

(João Sarmento Pimentel, Memórias do Capitão, capítulo "O «CABO VERDE»", páginas 153 e 154)


(...)
O balanço parcial das baixas portuguesas, que é um pouco mais bem conhecido que noutros locais, mostra, durante o mesmo período [1878-1916], um número mínimo de 1459 mortos (Naulila incluído mas excluídos os auxiliares) certificados, número que é razoável fixar em mais de 2000 homens, ou até 3000, se quisermos contar também os mortos por doença, que nunca ninguém será capaz de contabilizar. Por outras palavras: é provável que a posse do Sul de Angola por Portugal lhe tenha custado quase tantos mortos como a repressão das revoltas de 1961 e o abafamento da guerrilha entre 1961 e 1974.
O Sul de Angola, para os Portugueses, teve o sabor da cinza; o Ovambo teve o sabor do sangue.

(René Pélissier, História das Campanhas de Angola – Resistência e Revoltas 1845-1941. Volume II, página 264. Editorial Estampa, Lisboa, 1997)

Monday, January 17, 2011

Patrice Lumumba

Patrice Lumumba
(né le 2 juillet 1925 - assassiné le 17 janvier 1961, il y a cinquante ans)
Révélations sur la mort de Lumumba. Un ex-commissaire belge a fait disparaître son corps au Congo en 1961: Près de quarante ans après l'assassinat de Patrice Lumumba dans l'ex-Congo belge, le Brugeois Gérard Soete vient de révéler son secret: une nuit de janvier 1961, il fit disparaître à la scie et à l'acide le corps du martyr congolais après «s'être saoulé pour se donner du courage». Ces brutales confessions d'un ex-commissaire de police, chargé alors de mettre en place une «police nationale katangaise», s'inscrivent dans le réexamen par la Belgique de son passé colonial, dont les circonstances de l'assassinat de Patrice Lumumba, nationaliste intransigeant et figure emblématique des indépendances africaines. (...)
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Friday, January 14, 2011

Eu já não espero, sou aquele por quem se espera

.
Adeus à hora da largada


Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

(Agostinho Neto, Sagrada esperança)

Ouvir:
Adeus à hora da largada

Saturday, January 08, 2011

Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare...

Il n'y a pas d'amour heureux

Rien n'est jamais acquis à l'homme Ni sa force
Ni sa faiblesse ni son coeur Et quand il croit
Ouvrir ses bras son ombre est celle d'une croix
Et quand il croit serrer son bonheur il le broie
Sa vie est un étrange et douloureux divorce
Il n'y a pas d'amour heureux

Sa vie Elle ressemble à ces soldats sans armes
Qu'on avait habillés pour un autre destin
A quoi peut leur servir de se lever matin
Eux qu'on retrouve au soir désoeuvrés incertains
Dites ces mots Ma vie Et retenez vos larmes
Il n'y a pas d'amour heureux

Mon bel amour mon cher amour ma déchirure
Je te porte dans moi comme un oiseau blessé
Et ceux-là sans savoir nous regardent passer
Répétant après moi les mots que j'ai tressés
Et qui pour tes grands yeux tout aussitôt moururent
Il n'y a pas d'amour heureux

Le temps d'apprendre à vivre il est déjà trop tard
Que pleurent dans la nuit nos coeurs à l'unisson
Ce qu'il faut de malheur pour la moindre chanson
Ce qu'il faut de regrets pour payer un frisson
Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare
Il n'y a pas d'amour heureux

Il n'y a pas d'amour qui ne soit à douleur
Il n'y a pas d'amour dont on ne soit meurtri
Il n'y a pas d'amour dont on ne soit flétri
Et pas plus que de toi l'amour de la patrie
Il n'y a pas d'amour qui ne vive de pleurs
Il n'y a pas d'amour heureux
Mais c'est notre amour à tous les deux

Louis Aragon (La Diane Francaise, Seghers 1946)


Aragon / Georges Brassens: Il n'y a pas d'amour heureux
Il n'y a pas d'amour heureux (Danielle Darrieux)
Il n'y a pas d'amour heureux (Françoise Hardy)