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Tuesday, October 30, 2012

Uma secreta força

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Horácio encostara-se a um dos prédios da rua e, enquanto esperava que Pedro se afastasse, viu Manuel da Bouça arrastar-se calçada acima, por entre a multidão que vinha do cemitério. Também aquela imagem do velho céptico o molestou. E, então, pôs-se a olhar para os outros homens, vestidos de negro, que passavam na sua frente, caras que lhe eram familiares, operários da Aldeia do Carvalho, e da Covilhã, que ele conhecia da hora da saída das fábricas, dos diálogos no Pelourinho, das próprias ruas onde habitavam. À medida que iam passando, ele evocava as idéias, as embrionárias ansiedades que tinha ouvido a cada um deles, desde que deixara o cajado de pastor e viera trabalhar para as fábricas. E cada vez se apagavam mais, nos seus olhos, as imagens de Pedro e de Manuel da Bouça e cada vez ele se sentia mais confortado, mais confortado cada vez, por verificar que quase todos os que passavam na sua frente pensavam como Marreta e como ele próprio pensava agora.
Viu Tramagal, Ricardo e João Ribeiro a descerem a calçada — e juntou-se a eles. Ricardo disse-lhe:
— No sábado, à noite, vamos fazer uma reunião, aqui, na Covilhã, em casa do Ildefonso. Precisamos de continuar... Compreendes? Precisamos de continuar... Não faltes!
— Lá irei —respondeu. E voltou a sentir-se menos abandonado do que quando vira, momentos antes, enterrar Marreta e muito menos do que quando, há anos, entrara para a fábrica. Parecia-lhe que uma secreta força, que ele desconhecia quando viera para ali, partia dos outros para ele e dele para os outros — ligando-os a todos e dando-lhes, com novas energias, uma nova esperança.
Ao chegarem ao começo da Rua Azedo Gneco, onde ele vivia, Horácio despediu-se. Mesmo ao andar sozinho na viela solitária, parecia-lhe que não ia sozinho.
Quando chegou a casa, Idalina entoava uma cantiga monótona, para adormecer o filho. Mas o Joanico, ao ouvir ranger a porta e ao vê-lo entrar, abrira muito os olhos e sorrira-lhe.
Idalina estava com uma expressão triste e perguntou-lhe:
— Então? Tinha muita gente?
— Tinha.
O Joanico continuava a sorrir-lhe. Ele sentiu um súbito desejo de pegar no filho e de o acariciar. Vencendo os protestos de Idalina, agarrou no Joanico, levantou-o do berço até à altura dos seus olhos e beijou-o:
— Seu maroto, que não quer dormir! — E voltando-se para a mulher: — Vamos a ver se, na Páscoa, podemos ir a Manteigas, mostrar o pequeno aos avós... 
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(Ferreira de Castro, A lã e a neve: romance)
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 Ilustração de Bernardo Marques para a capa do livro A lã e a neve

Monday, December 26, 2011

«Porque a verdade é que uma emigração feita conscienciosa e inteligentemente só podia ser útil ao país.»

(...)
Quando o automóvel entrou, enfim, na praça de Vale de Cambra, o olhar de Nunes correu, ansiosamente, para a fachada da sua nova agência. Esse primeiro exame deixou-o satisfeito. Sobre a parede recém-pintada a ocre, lá estava a tabuleta:
E em cima, ora encarquilhando-se, ora distendendo-se com a brisa, a bandeira nacional. Serafim Costa, mal o carro se deteve, veio correndo lá de dentro para cumprimentar o sócio. Nunes apeou-se, apertou a mão que o outro lhe estendia e, envolvendo o interior da casa num olhar perscrutador, inquiriu:
— Então? Está tudo preparado?
— Tudo! Deu um trabalhão, mas tudo se arranjou. A nova agência era muito mais vistosa do que aquela onde Nunes amassara os alicerces da sua fortuna.
(...)
Ainda nem todos haviam sorvido o gole convencional de «champagne» e já o administrador do concelho exclamava:
— Excelentíssimos senhores Evaristo Nunes e Serafim Costa, meus ilustres amigos e grandes patriotas...
E começaram a passar todas as frases da «Arte de falar em público», que ele havia lido há anos e que podiam ser adequadas ao instante.
(...)
Por isso desejava que o exemplo de Nunes frutificasse. Nunes era um grande patriota, na acepção mais pura da palavra. Sendo filho de outro concelho, não hesitara em dotar Vale de Cambra com uma obra daquela natureza. Iniciava-se, é certo, principalmente nas cidades, uma grande campanha contra a emigração. Ele devia confessar que essa campanha, em parte, tinha razão de ser e merecia o seu aplauso. Pensava que era necessário terminar com o abuso dos engajadores e agentes desonestos, mas, ao mesmo tempo, era preciso estimular homens da envergadura moral de Evaristo Nunes. Porque a verdade é que uma emigração feita conscienciosa e inteligentemente só podia ser útil ao país. Tudo quanto de grande tinham as províncias de Portugal — e ele conhecia-as bem — era devido aos emigrantes que haviam enriquecido lá fora. Eram eles, os que partiam pobres e regressavam ricos, que mandavam construir hospitais, troços de estrada, igrejas, chafarizes, melhoramentos públicos de toda a ordem. Se esses homens não tivessem saído da terra, jamais poderiam dar a esta benefícios e orgulho!
Entusiásticas palmas acompanharam as últimas palavras do administrador.
Nunes pousou a sua taça, levou a mão à gravata e tornou a pegar na taça, para agradecer. Sentindo que todos os olhos se fixavam nele, esforçou-se por manter a expressão de modéstia e de humildade que tomara desde que os discursos haviam começado.
Não era merecedor de tantos elogios — disse. — Fizera apenas o seu dever de patriota e de republicano. E se evocava ali as suas opiniões políticas, era por estar em frente de dois correligionários de grande prestígio, o doutor Arruda e o senhor administrador — e ainda por entender que todo o bom republicano devia trabalhar para engrandecer a província sob a vigência da República, que era a mesma coisa que à República engrandecer.
(...)
Respondendo à última parte do discurso do administrador, afirmou que todos podiam estar descansados. Ele defendia a emigração, porque ela constituía o maior caudal de oiro que exploravam os emigrantes. Agente de passagens e passaportes há muitos anos, podia vangloriar-se de ter as mãos limpas. E este passado respondia pelo seu futuro. O único orgulho da sua vida era ser um homem honesto e — por que não dizê-lo? — um sincero, um desinteressado patriota!

***
(...)
Nos Salgueiros, (quis furtar-se à curiosidade dos da casa do Tavares e pediu à velha Rosa que caminhasse para o lado do Pontão. Ela, porém, estranhando o desejo singular, argumentou com a camioneta, que só pararia ali se trouxesse pouca gente, ao jpasso que na loja do Tavares tinha de parar, pelo correio, mesmo que viesse a abarrotar.
— Não faz mal.
Só se detiveram para além do povoado, demorando-se ele a olhar a sua casa, humilde e pequena, ao longe, e a terra fecunda que ambicionara, a terra em que nascera e que o perdia agora para sempre — para sempre... Haviam-se tornado irreconciliáveis o homem que se adaptara a outra atmosfera e aquelas jeiras verdes que já não encontravam amor no seu coração de repatriado. Delas não portava saudades; se pudesse levar consigo o tagarela do neto e garantir a perpetuidade da sepultura de Amélia, não lhe daria tristeza a despedida — mesmo que fosse a última.
Dali, ele via também o palacete do Nunes, que se via de toda a freguesia — que se via de toda a parte. E considerava-lhe a magnificência, às furtadelas da tia Rosa, quando na estrada surgiu figura conhecida. Era o Lopes de Sandiães, que já o lobrigara e lhe sorria de longe. «Má raios o partam!» — murmurou.
Não pôde eximir-se ao paleio e já se deixava conduzir à loja do Tavares, para não dar com a recusa motivo a suspeição, quando ouviu o rodar da camioneta.
Respirou. O veículo detevê-se e ele subiu — «adeus senhor Lopes, até qualquer dia!» — o coração mais negro do que a noite negra e a mão colocando na da velha recoveira algumas moedas.
Não levava já a ânsia de volver, como há nove anos, quando partira para o Brasil; desejava apenas ocultar em Lisboa a sua miséria e que nunca mais se lembrassem dele, que o esquecessem para sempre.
A camioneta passou rente ao palacete do Nunes, que emanava para a estrada perfume intenso de rosas; parou junto à porta do Tavares, pela mala do correio, obrigando-o a dizer lá para dentro, com máscara improvisada, que talvez voltasse brevemente, que ia gozar uns dias a Lisboa e depois se estabeleceria ou regressaria, conforme resolvesse...
Retomada a marcha e aliviado da obrigação de mentir, espraiou os olhos, em derradeiro adeus, pela freguesia. Veio-lhe, então, um desejo enorme de chorar — de chorar a sua vida inutilizada, o passado que não volveria, as ilusões que fora abandonando ao longo da áspera jornada. Sentia agora o irremediável, o tempo perdido, os anos em que se esgotara, avelhentando, correndo, correndo atrás da quimera fugidia. E estrangulava os soluços na garganta, para que ninguém os ouvisse.
A camioneta rodava velozmente, levando-o para o esquecimento, roubando-o à sua vida de fecundador da terra, para o entregar, indefeso, vencido, a uma outra vida que era ainda, para ele, um enigma.
Tudo passava lesto; tudo, casais, árvores e caminhos, se confundia, humildemente, na mansidão bucólica da tarde. De altivo, berrante, orgulhoso, só o palacete do Nunes, que enriquecera sem ir a nenhum dos países da América — que enriquecera com os que tinham ido e por lá ficaram, entregues aos acasos da sorte, ou haviam regressado pobres, desiludidos e gastos como Manuel da Bouça.
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Ilustração de Bernardo Marques para a capa do livro Emigrantes
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Poesia de Rosalía de Castro, traduzida e musicada por José Niza 
Este vaise i aquel vaise, / e todos, todos se van. / Galicia, sin homes quedas / que te poidan traballar. / Tés, en cambio, orfos e orfas / e campos de soledad, / e nais que non teñen fillos / e fillos que non ten pais. / E tés corazóns que sufren / longas ausencias mortás, / viudas de vivos e mortos / que ninguén consolará.

Tuesday, April 26, 2011

A dívida


Ferreira de Castro

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No escritório, que tinha portinhola aberta para ali, sentava-se Juca Tristão e, de caneta em punho, ia registando o que os seringueiros queriam e diminuindo os pedidos sempre que quem comprava tinha dívida grande na casa.
— Um paneiro de farinha? Não pode ser! Levas só dois litros.
— Mas que vou eu comer, seu Juca, na semana?
— Não sei. Deves mais de seiscentos mil reis. Trabalha!
— Trabalhar mais, eu? A mim nunca seu Alípio ou seu Caetano me apanharam na rede. Bem puxo pela estrada, mas ela é que não dá.
Juca Tristão não respondia. Quando o seringueiro tinha «saldo», vendia-lhe tudo quanto ele desejasse; fosse loucura rematada ou objecto inútil, tudo dava mais lucro do que passar-lhe, no futuro, um saque para ser trocado por bom dinheiro na «casa aviadora», em Manaus. Mas se o trabalhador, por curta estadia ali, por doença ou preguiça não conseguira solver a dívida inicial, que rebentasse de fome, pescasse ou caçasse, pois não lhe forneceria nada que fosse além do valor da produção. De sem-vergonhas que morreram antes de liquidar o débito ou que fugiram como cães, sem que ninguém os apanhasse, havia largo cadastro no seringal, a exemplificar quanto eram perigosas as transigências impostas por dó do coração.
— Então sempre vai o paneiro, patrãozinho? Juca dava-lhe a nota onde lançara os dois litros de farinha e o mais que concedera — e, sem outras explicações, atendia a novo seringueiro. Dali se vinha ao balcão, onde Binda, decifrando o papel, ia fornecendo o que lá estava escrito.
Mas para com os «brabos», ignorantes do que era e não era indispensável, Juca Tristão procedia de maneira diferente. Ele próprio organizava a lista do aviamento: o boião para defumar, a bacia para o latex, o galão, o machadinho, as tigelinhas de folha, todos os utensílios que a extracção da borracha exigia — e mais um quilo de pirarucú e uns litros de farinha, pois nos primeiros dias nunca um «bravo» sabe como se caça a paca e a cotia ou se pesca o tambaqui.
Aquele era sempre o «talão grande» que, somado as despesas da viagem e mais empréstimos, prendia por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingénuo.
Alberto viu-se com o seu na mão — setecentos e vinte mil reis parcelados por seis ou oito linhas — e, depois, sobre o balcão, meia dúzia de coisas que não valiam um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o rabo do olho, atirado à nota do vizinho, descobriu nela quantia igual, repetida em quantos papéis se estendiam para Binda.
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(Ferreira de Castro, A selva: romance)