Monday, November 14, 2011

"JOSÉ" (Carlos Drummond de Andrade)

Carlos Drummond de Andrade, por Portinari

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José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?


E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?


Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!


Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


(Copiado de Memória Viva / Memória Viva)

Ouça pela voz de Drummond:
José
José


CARTA DE JOSÉ
"Prezado cronista:
Permita que me apresente. Sou José, sem mais nada. Não tendo família, não tenho sobrenome. Aliás não tenho nada, salvo a particularidade de estar sempre ligado a uma pergunta que o amigo há de ter ouvido muitas vezes, e que também outras muitas terá feito ao próximo ou a si mesmo. Pergunta curiosa: ninguém pensa em respondê-la, ou porque não sabe ou porque não há mesmo resposta válida para ela. Uns chegam a supor que se trata de pergunta não interessada em ser respondida. Para outros, malgrado a característica formal, ela já é em si uma resposta. Que resposta? Uma pergunta. Morou? Não faz mal. Ela continua a ser feita.
(...)
O autor, segundo me consta, é conhecido, senão íntimo do senhor. Pois então, leia de novo o poema que se refere a este seu criado, e diga se estou certo em responder eu mesmo — afinal — à pergunta que muita gente se faz: E agora, José? Agora, continuo. Atenciosamente, José."
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Correio da Manhã, 14/06/67
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