O COMPANHEIRO OCULTO DE AITKEN-14
Cada vez sinto mais a força poética do conhecimento científico. Poeta, para mim, neste momento, é Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, astrônomo-chefe da Seção de Equatoriais do Observatório Nacional. Seus livros de versos não contêm versos, embora obedeçam à métrica mais exigente: a micrométrica. Usa o menor número possível de palavras; exprime-se por algarismos, com rigor matemático. Entretanto, Rogério vê o invisível, o que me parece ser o objeto principal da poesia, e resultado que raros poetas conseguem obter em raros instantes de felicidade verbal.
Ver o invisível? Isso mesmo. Armado de poderosas lentes de observatório, não se satisfaz com o que elas lhe revelam; vai além, e, a poder de cálculos, identifica, suspensos no espaço, corpos alheios à vista humana. Ainda agora, descobriu o companheiro oculto de Aitken-14, estrela dupla.
As estrelas duplas são o forte desse moço pesquisador celeste que já editou quatro séries de dados sobre pares de estrelas, fruto de observação própria. O catálogo do Lick Observatory, em 1964, informa sobre a existência conhecida, até 1960, de 64.247 estrelas duplas. Nesse universo fantástico, Ronaldo se move com a perícia (e a intuição poética) do caçador submarino que fisga espécies novas para oferecê-las ao conhecimento humano.
Estrelas duplas, ou binárias, são as que se apresentam com características comuns de posição e movimento. O padre O'Grady, em seu dicionário do céu, salva minha ignorância, anotando que a origem desses sistemas estelares ainda é objeto de discussão; admite-se geralmente que as duplas resultam da divisão de estrelas simples, do mesmo modo que, ao se dividirem as duplas, se criam as triplas, e assim por diante. Seja como for, o certo é que a imagem desses astros conjugados em órbita é de extraordinária eficácia lírica. A relação amorosa fatalmente se insinua no conhecimento científico, ou este é que o sugere. Estrelas que não querem viver desgarradas, que se prendem por uma necessidade maior, denunciada pelo Dante: l'amor che move il sole e l'altre stelle. O verso medieval não se gastou, depois de tão repetido pela demagogia poética: a ciência de nossos dias o comprova.
Aitken-14 não se satisfez com a existência geminada; guarda consigo o segredo de outra companhia, de que Rogério Mourão foi descobridor à custa de muita e ordenada pesquisa, ele que retificou as medidas internacionais da Dunlop-203 e devassa o céu noturno, sem Lua, por meio de uma "câmara todo-céu", de sua concepção. Que companhia é esta, invisível mas pulsante na página cheia de números? A objetiva mais poderosa ainda não logrou captá-la. Não há imagem brilhante, disco estelar, anéis de difração. Tudo está entre Rogério e a folha de cálculos enigmáticos para nós leigos, mas isto se move, isto vibra, e amanhã, daqui a não sei quantos anos, terá conhecida sua natureza, sua composição, seu mistério; será talvez pisado por pés de homem. Segundo o Informe JB, que dá a notícia, Rogério sabe que tão cedo sua descoberta não será cantada em prosa e verso. Nem precisa de canto. A descoberta é a própria poesia. Forma diversa da usada habitualmente para manifestar a criação poética, e mais direta: a criação do próprio fato de poesia, abstração tornada realidade. Não, Ronaldo Rogério de Freitas Mourão não necessita de prosa ou verso, ou versiprosa, para que visualizemos sua estrela oculta: ela está luzindo com apenas ser enunciada, e daqui lhe confesso minha inveja: ah, que sei apenas escrever a palavra estrela, e jamais descobrirei uma...
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Jornal do Brasil, 26/05/70
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