Sunday, January 23, 2011

O olhar de Cachipaleca


B — O ESMAGAMENTO DOS HUMBES
O primeiro recontro que assinala a reconquista do Humbe deu-se a 29 de Maio de 1915 (...). O superior de (T)Chipelongo, o Padre Ballet, que durante todo o tempo em que o Sul esteve abandonado pelos Portugueses foi o único branco do Humbe, foi pedir socorro ao batalhão de fuzileiros navais que chegara a (T)Chicusse, no limite do Humbe. Os Humbes foram repelidos por um destacamento (uma centena de homens) da Marinha (...) e de landins (caçadores moçambicanos). Foram mortos três chefes, parentes do soba do Humbe, e a resistência foi pouco eficiente. Seria nula um mês depois, quando Pereira de Eça mandou fuzileiros navais reocupar o Humbe, que estava completamente arrasado. Já nem havia água nas cacimbas ao longo do Caculovar e não havia quem enterrasse os cadáveres de animais e homens esfomeados. O Humbe foi, portanto, atingido a 7 de Julho sem resistência nenhuma.
Pereira de Eça mandou igualmente devastar a Dongoena por sete oficiais, 93 cavaleiros e 36 boers que mostraram bem o seu «valor» matando cerca de 600 Dongoenas (...), entre eles o soba Cachipaleca, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Do Humbe, da sua residência, da fortaleza e das casas comerciais tinham ficado apenas paredes calcinadas. Os homens válidos tinham-se refugiado no Cuamato e no Cuanhama. Dos Alemães (...) não havia, evidentemente, vestígios, pois já se tinham rendido ao general Botha. A guerra seria, pois, contra o «gentio» e, enquanto se esperava para o defrontar, aplicou-se uma política de terror (*).

(*) Mesmo na retaguarda e em região «amiga», as requisições de gado equivaliam a pôr à fome os Ngambos. Em data que não encontrámos, foram chacinadas uma soba ngamba e a sua gente, que se encontravam no extremo limite das forças e não podiam fornecer carregadores nem carne. Um simples acidente nos Gambos, onde pereceram de fome 10 000 pessoas. Carlos Roma Machado de Faria e Maia, «Colonização do planalto da Huíla e Moçâmedes», B. S. G. L., 36.ª série, n.° 10-12, Outubro-Dezembro de 1918, p. 302.

(René Pélissier, História das Campanhas de Angola – Resistência e Revoltas 1845-1941. Volume II, páginas 242,243. Editorial Estampa, Lisboa, 1997)


(...)
Dormi tranquilamente, bem certo que o Cachipaleca não tornava a fugir; demais havia a garantia do Manuel ficar no quarto de alba e ordem de nenhum preto se aproximar do prisioneiro.
Na manhã seguinte, já vim encontrar o desgraçado com o laço de couro trançado no pescoço e passado por cima dum dos grandes galhos da árvore frondosa do terreiro exterior, amarrada a ponta na argola do selim de um dos cavalos mais fortes do esquadrão.
Bicho feroz e raivoso, leão que fosse ou palanca vermelha gigante, não o prenderiam com maior cautela e segurança. As mãos cruzadas atrás das costas era uma tira de couro bem testa que as manietava. Nos pés, acima do tornozelo uma soga amaciada com tutano para não gretar, só permitia o movimento de se agachar, e tão justa a puseram que fazia vincos fundos provocando-lhe assim aturado suplício.
Ordenei logo que lhe desamarrassem os pés para os poder erguer à vontade, e que lhe dessem de beber. Emborcou sofregamente uma grande cuia de água que lhe deve ter causado violento mal-estar, pois o suor lhe molhava o corpo todo. Depois mandei-lhe perguntar o que é que mais queria antes de morrer. Só desejava despedir-se das suas duas mulheres e ver os dois filhos pequenos que tinha delas — um molequito dos seus cinco anos e uma cucama que andava na mudança de dentição. Veio o grupo acompanhado por dois boers que permitiram a despedida a uma distância de poucos passos. E aquele homem forte e altivo, corpo de atleta, deitou à sua pobre e amedrontada família um olhar sereno, carinhoso. E foram tão meigas e de tanta ternura as palavras que lhe disse, que havia de comover o coração mais duro, não fora o ódio e vingança presidirem o drama de que, nós outros, éramos autores e também actores.
Nós não nos apiedámos da desgraça e da dor que roubavam o chefe de uma família notável e prestigiosa na tribo, herdeira, talvez secular, do poder e honras do sobado da Dongoena. Só nos movia a desforra pela morte dos nossos e dos que tinham ficado ao nosso serviço, e que, por sua lealdade ao Manipulo (1), foram sacrificados.
(...)
Quando aquelas duas mulheres, tão a dizer com as do drama do Calvário, se afastaram para o fundo do terreiro e ia consumar-se o suplício, o Cachipaleca olhou a assistência com ar de desprezo e para além da morte, e olhou-me a mim fixamente. E então eu vi que o seu olhar tinha a grandeza e o brilho ofuscante que iluminou o remorso na noite de Caim.
(...)

(1) Maniputo: «o rei de Portugal».


(João Sarmento Pimentel, Memórias do Capitão, capítulo "A FERRO E FOGO", páginas 166 e 167)

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