Thursday, January 20, 2011

Começava o monstro, que se chama guerra...

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Aquele barulho da corrida dos cavalos, os palavrões e berros da soldadesca, despertavam os habitantes de Moçâmedes até os de sono mais pesado.
Vultos em trajes de dormir abriam as janelas, espreitavam e benziam-se, pensando que eram demónios à solta invadindo aquela terra pacata. E logo corriam as vidraças de guilhotina, cerravam as persianas, os amedrontados, os estremunhados moradores, não fosse mau olhado do bruxedo trazer-lhes biliosa fatal, maleitas, intermitente da mabata, picada de cobra venenosa.
Mas na passagem pela Viela das Pombas, os tropas viram abrir-se uma porta e de candeia na mão, uma preta nua, dizia-lhes: «Vem cá meu bem».
Que fossem para o diabo cavalos, muares, o raio que os parta. O serviço era outro. Famintos vinham eles daquilo que a Vénus cor de ébano lhes oferecia logo ali e como recompensa dos trabalhos e perigos passados a bordo do «Cabo Verde». A nova correu célere e à porta do lupanar formou-se bicha como de entrada pró cinema em dia de estreia! Cada um deixava «uma croa», alvitraram os primeiros.
Quando a rapariga se quis levantar, isso sim! a fila já ia até à beira da esteira e um qualquer soprou a luz da candeia. Um atrás do outro, não se soube quantos ela atendeu ainda com vida, que o resto já fora depois de ter morrido por tanta gente a passar à fieira!
De manhã, quando as mucamas dos outros chalets se levantaram, deram com a porta aberta, um cachorro a lamber o sangue que tinha escorrido da esteira até à porta e a rapariga de boca escancarada e barriga pró ar já tão inchada como se estivesse prenha.
Desataram numa gritaria que parecia o fim do mundo. Acudiu toda a negrada do arrabalde e um cipaio da ronda foi dar parte à Polícia.
Escândalo tremendo, inquérito, conselho de guerra, e tudo arquivado por falta de testemunhas e provas contra este ou aquele, pois que foi uma centena ou mais a cometer o crime de assassinato. Instrumento de agressão, nem vale a pena explicar para a causa mortis ser justificada.
Começava o monstro, que se chama guerra, a dar provas da sua hediondez.

(João Sarmento Pimentel, Memórias do Capitão, capítulo "O «CABO VERDE»", páginas 153 e 154)


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O balanço parcial das baixas portuguesas, que é um pouco mais bem conhecido que noutros locais, mostra, durante o mesmo período [1878-1916], um número mínimo de 1459 mortos (Naulila incluído mas excluídos os auxiliares) certificados, número que é razoável fixar em mais de 2000 homens, ou até 3000, se quisermos contar também os mortos por doença, que nunca ninguém será capaz de contabilizar. Por outras palavras: é provável que a posse do Sul de Angola por Portugal lhe tenha custado quase tantos mortos como a repressão das revoltas de 1961 e o abafamento da guerrilha entre 1961 e 1974.
O Sul de Angola, para os Portugueses, teve o sabor da cinza; o Ovambo teve o sabor do sangue.

(René Pélissier, História das Campanhas de Angola – Resistência e Revoltas 1845-1941. Volume II, página 264. Editorial Estampa, Lisboa, 1997)

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