Monday, August 29, 2011

A saia de Alicita


(...)
Outro momento que dá bem a medida do cunho de bondade, de humanidade e espírito de sacrifício que Soeiro Pereira Gomes possuia passou-se pouco tempo antes de ele morrer.
Mais uma vez o elevador não funcionava e obriga o nosso amigo a subir a pé até ao 5.° andar. A criada da casa vem dizer-me: «Está ali o senhor Teixeira.» Respondo, instintivamente: «Não pode ser... o elevador não funciona.» Custava-me a acreditar quc ele fosse capaz, no estado em que já se encontrava, de subir todos aqueles lances de escada. Pois era ele. E eu digo: «Então foste capaz de subir ate aqui, pá?!» «Que querias que eu fizesse? Mas não custou nada. Venho só dar-te um abraço. E gostaria de falar a Alicita, mas já que ela não está da-lhe estas calças de linho inglês. Usei-as muito pouco. Ela que faça delas uma saia.»
Depois deitou-se em cima da minha cama e perguntou: «Tens aí um cigarro?» Eu não fumava por hábito, na altura, e por isso respondi: «Não, não tenho. O Orlando é que fuma, mas não tem cá tabaco.» Então ele diz «Deixa, que eu tenho aqui um cigarro.» Vai ao bolso do peito do casaco, tira um Du Maurier, parte-o ao meio e estende-me metade, dizendo:«Vamos os dois fumar uma cigarrada, para despedida. Vou para a aldeia tratar-me junto da família. Lá, vou melhorar muito. Isto vai ficar em boas condições.» Tudo dito com um sorriso, como se estivesse alegre e seguro de que tudo se iria passar assim.
Era um amigo cheio de ternura e gratidão. O facto de se ter sacrificado a subir daquele 5.º andar para se despedir de nós e, simulando grande satisfação, fumar o meio cigarro para «comemorar» as melhoras que adviriam da sua partida para a «aldeia», prova isso mesmo.
Não tornaria a vê-lo.
Mas a sua estatura moral e humana, a sua coragem tem-me acompanhado ao longo da vida e dado ânimo em momentos difíceis.

(...)
As calças brancas, de linho, que ele quis deixar-me como recordação, no último dia que foi à Rua Andrade Corvo, transformei-as na saia que ele sugeriu. Ainda a conservo e uso. Tanto para mim como para o Maldonado é lembrança de inestimável valor.

[Depoimentos de Custódio Maldonado Freitas e Alice de Carvalho no livro A Passagem. Uma biografia de Soeiro Pereira Gomes de Manuela Câncio Reis.]

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