(...)
Castro Verde merece o nome que tem. Está num alto e não lhe faltam verduras para aliviar os olhos das sequidões da charneca. Se só de monumentos cuidasse hoje o viajante, mal lhe valeria a pena de vir de tão longe para o pouco que verá, valendo embora tanto atravessar mais de quarenta quilómetros de searas ceifadas. Está aberta a Igreja das Chagas do Salvador, que tem para mostrar ingénuos quadros com cenas guerreiras e um bom silhar de azulejos, mas a matriz, a que chamam aqui basílica real, não. O viajante desespera-se. Vai à procura do padre que mora em tal e tal sítio, uma casa toda cercada de parreiras, engana-se uma vez e duas, e enfim dá com a residência, cá estão as parreiras. O padre é que não está. O viajante dá a volta à casa, vai aos fundos do quintal, nem cão ladra nem gato sopra. Regressa zangado à igreja, abana-lhe as fortíssimas portas (é uma imensa construção, e diz-se que lá dentro há uns painéis de azulejos que representam episódios da batalha de Ourique), mas o santo lugar não se comove. Estivessem estas coisas convenientemente organizadas, e, faltando o padre, viria um anjo à porta, abanando as asas para se refrescar, e perguntaria: «Que queres?» E o viajante: «Venho ver os azulejos.» Tornava o anjo: «És crente?» E o viajante, em confissão: «Não, não sou. Tem importância para os azulejos?» E o anjo: «Não tem nenhuma. Podes entrar.» Assim é que devia ser. Quando o padre regressasse, o anjo daria contas da sua guarda: «Esteve aí um viajante para ver os azulejos. Deixei-o entrar. Pareceu-me boa pessoa.» E o padre, para dizer alguma coisa: «Era crente?» Responderia o anjo, que não gosta de mentir: «Era.» Num mundo assim, pensa o viajante, não ficaria um azulejo para ver.
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(José Saramago, Viagem a Portugal)
Castro Verde merece o nome que tem. Está num alto e não lhe faltam verduras para aliviar os olhos das sequidões da charneca. Se só de monumentos cuidasse hoje o viajante, mal lhe valeria a pena de vir de tão longe para o pouco que verá, valendo embora tanto atravessar mais de quarenta quilómetros de searas ceifadas. Está aberta a Igreja das Chagas do Salvador, que tem para mostrar ingénuos quadros com cenas guerreiras e um bom silhar de azulejos, mas a matriz, a que chamam aqui basílica real, não. O viajante desespera-se. Vai à procura do padre que mora em tal e tal sítio, uma casa toda cercada de parreiras, engana-se uma vez e duas, e enfim dá com a residência, cá estão as parreiras. O padre é que não está. O viajante dá a volta à casa, vai aos fundos do quintal, nem cão ladra nem gato sopra. Regressa zangado à igreja, abana-lhe as fortíssimas portas (é uma imensa construção, e diz-se que lá dentro há uns painéis de azulejos que representam episódios da batalha de Ourique), mas o santo lugar não se comove. Estivessem estas coisas convenientemente organizadas, e, faltando o padre, viria um anjo à porta, abanando as asas para se refrescar, e perguntaria: «Que queres?» E o viajante: «Venho ver os azulejos.» Tornava o anjo: «És crente?» E o viajante, em confissão: «Não, não sou. Tem importância para os azulejos?» E o anjo: «Não tem nenhuma. Podes entrar.» Assim é que devia ser. Quando o padre regressasse, o anjo daria contas da sua guarda: «Esteve aí um viajante para ver os azulejos. Deixei-o entrar. Pareceu-me boa pessoa.» E o padre, para dizer alguma coisa: «Era crente?» Responderia o anjo, que não gosta de mentir: «Era.» Num mundo assim, pensa o viajante, não ficaria um azulejo para ver.
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(José Saramago, Viagem a Portugal)
Vídeo: Basílica Real - Castro Verde
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