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Como quer que seja, para a Amazônia de agora devera restaurar-se integralmente, na definição da sua psicologia coletiva, o mesmo doloroso apotegma - ultra equinotialem non peccavi - que Barlaeus engenhou para os desmandos da época colonial. Os mesmos amazonenses, espirituosamente, o perceberam. À entrada de Manaus existe a belíssima Ilha de Marapatá - e essa ilha tem uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos - um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência... Meça-se o alcance dêste prodígio da fantasia popular. A ilha que existe fronteira à bôca do Purus, perdeu o antigo nome geográfico e chama-se "Ilha da Consciência"; e o mesmo acontece a uma outra, semelhante, na foz do Juruá. É uma preocupação: o homem, ao penetrar as duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia formidável.
É que, realmente, nas paragens exuberantes das heveas e castilloas, o aguarda a mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo. De feito, o seringueiro - e não designamos o patrão opulento, senão o freguês jungido à gleba das "estradas" -, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se.
Demonstra-se esta enormidade precitando-a com alguns cifrões secamente positivos e seguros.
Vêde esta conta de venda de um homem:
No próprio dia em que parte do Ceará, o seringueiro principia a dever: deve a passagem de proa até ao Pará (35$000), e o dinheiro que recebeu para preparar-se (150$000). Depois vem a importância do transporte, num "gaiola" qualquer de Belém ao barracão longínquo a que se destina, e que é, na média, de 150$000. Aditem-se cêrca de 800$000 para os seguintes utensílios invariáveis: um boião de furo, uma bacia, mil tigelinhas, uma machadinha de ferro, um machado, um terçado, um refle (carabina Winchester) e duzentas balas, dois pratos, duas colheres, duas xícaras, duas panelas, uma cafeteira, dois carretéis de linha e um agulheiro. Nada mais. Aí temos o nosso homem no "barracão" senhoril, antes de seguir para a barraca, no centro, que o patrão lhe designará. Ainda é um "brabo", isto é, ainda não aprendeu o "corte da madeira" e já deve 1:135$000. Segue para o pôsto solitário encalçado de um comboio levando-lhe a bagagem e víveres, rigorosamente marcados, que lhe bastem para três meses: 3 paneiros de farinha de água, 1 saco de feijão, outro, pequeno, de sal, 20 quilos de arroz, 30 de xarque, 21 de café, 30 de açúcar, 6 latas de banha, 8 libras de fumo e 20 gramas de quinino. Tudo isto lhe custa cêrca de 750$000. Ainda não deu um talho de machadinha, ainda é o "brabo" canhestro, de quem chasqueia o "manso" experimentado, e já tem o compromisso sério de 2:090$000.
Admitamos agora uma série de condições favoráveis, que jamais concorrem: a) que seja solteiro; b) que chegue à barraca em maio, quando começa o "corte"; c) que não adoeça e seja conduzido ao barracão, subordinado a uma despesa de 10$000 diários; d) que nada compre além daqueles víveres - e que seja sóbrio, tenaz, incorruptível; um estóico firmemente lançado no caminho da fortuna arrostando uma penitência dolorosa e longa. Vamos além - admitamos que, malgrado a sua inexperiência, consiga tirar logo 350 quilos de borracha fina e 100 de sernambi, por ano, o que é difícil, ao menos no Purus.
Pois bem, ultimada a safra, êste tenaz, êste estóico, êste indivíduo raro ali, ainda deve. O patrão é, conforme o contrato mais geral, quem lhe diz o preço da fazenda e lhe escritura as contas. Os 350 quilos remunerados hoje a 5$000 rendem-lhe 1:750$000; os 100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total 2:000$000.
É ainda devedor e raro deixa de o ser. No ano seguinte já é "manso": conhece os segredos do serviço e pode tirar de 600 a 700 quilos. Mas considere-se que permaneceu inativo durante todo o período da enchente, de novembro a maio _ sete meses em que a simples subsistência lhe acarreta um excesso superior ao duplo do que trouxe em víveres, ou seja, em números redondos, 1:500$000 -admitindo-se ainda que não precise renovar uma só peça de ferramenta ou de roupa e que não teve a mais passageira enfermidade. É evidente que, mesmo nêste caso especialíssimo, raro é o seringueiro capaz de emancipar-se pela fortuna.
Agora vêde o quadro real. Aquêle tipo de lutador é excepcional. O homem de ordinário leva àqueles lugares a imprevidência característica da nossa raça; muitas vêzes carrega a família, que lhe multiplica os encargos; e quase sempre adoece, mercê da incontinência generalizada.
Adicionai a isto o desastroso contrato unilateral, que lhe impõe o patrão. Os "regulamentos" dos seringais são a êste propósito dolorosamente expressivos. Lendo-os, vê-se o renascer de um feudalismo acalcanhado e bronco. O patrão inflexível decreta, num emperramento gramatical estupendo, coisas assombrosas.
Por exemplo: a pesada multa de 100$000 comina-se a êstes crimes abomináveis: a) "fazer na árvore um corte inferior ao gume do machado"; b) "levantar o tampo da madeira na ocasião de ser cortada"; c) "sangrar com machacinhas de cabo maior de quatro palmos". Além disto o trabalhador só pode comprar no armazém do barracão, "não podendo comprar a qualquer outro, sob pena de passar pela multa de 50% sôbre a importância comprada".
Farpeiem-se de aspas êstes dizeres brutos. Ante êles é quase harmoniosa a gagueira terrível de Caliban. É natural que ao fim de alguns anos o "freguês" esteja irremediàvelmente perdido. A sua dívida avulta ameaçadoramente: três, quatro, cinco, dez contos, às vêzes, que não pagará nunca. Queda, então, na mórbida impassibilidade de um felá desprotegido dobrando tôda a cerviz à servidão completa. O "regulamento" é impiedoso: "Qualquer "freguês" ou "aviado" não poderá retirar-se sem que liqüide tôdas as suas transações comerciais..." Fugir? Nem cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar outro barracão? Há entre os patrões acôrdo de não aceitarem, uns os empregados de outros, antes de saldadas as dívidas, e ainda há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizar-se essa aliança, criando-se pesadas multas aos patrões recalcitrantes.
Agora, dizei-me, que resta, no fim de um qüinqüênio, do aventuroso sertanejo que demanda aquelas paragens, ferretoado da ânsia de riquezas?
Não o ligam sequer à terra. Um artigo do famoso "regulamento" torna-o eterno hóspede dentro da própria casa. Citemo-lo com todo o brutesco de sua expressão imbecil e feroz: "Tôdas as benfeitorias que o liqüidado tiver feito nesta propriedade perderá totalmente o direito uma vez que retire-se."
Daí o quadro doloroso que patenteiam, de ordinário, as pequenas barracas. O viajante procura-as e mal descobre, entre as sororocas, a estreitíssima trilha que conduz à vivenda, meio afogada no mato. É que o morador não despende o mais ligeiro esfôrço em melhorar o sítio de onde pode ser expelido em uma hora, sem direito à reclamação mais breve.
Esta resenha comportaria alguns exemplos bem dolorosos. Fôra inútil apontá-los. Dela ressalta impressionadoramente a urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esfôrço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; e uma forma qualquer do homestead que o consorcie definitivamente à terra.
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