Sunday, February 13, 2011

ministros da Noite, que, como cães esfaimados me parece que toda a prata do mundo os não poderá fartar


CAPÍTULO LXXVI

Como António de Faria chegou a esta irmida e do que passou nela.

Caminhando António de Faria para a irmida que tinha diante, c'o maior silêncio que podia, e não sem algum receio, por não saber até então o em que se tinha metido, levando todos o nome de Jesu na boca e no coração, chegamos a um terreiro pequeno que estava diante da porta, e inda até ‘qui não houvemos vista de pessoa nenhũa.
E António de Faria, que ia sempre diante com um montante nas mãos, apalpou a porta e a sintio fechada por dentro. E mandando a um dos chins que estava junto com ele que batesse, ele o fez por duas vezes, e de dentro lhe foi respondido:
— Seja louvado o Criador que esmaltou a fermosura dos céos! Rodée por fora, e saberei o que quer.
O chim rodeou a irmida, e entrou nela por ũa porta travessa. E abrindo a em que estava António de Faria, ele, com toda a gente entrou dentro na irmida, e achou dentro nela um homem velho, que ao parecer seria mais de cem anos, com ũa vestidura de damasco roxo muito comprida, o que no seu aspeito parecia ser homem nobre, como despois soubemos que era.
O qual, em vendo o tropel da gente, ficou tão fora de si que caío de focinhos no chão, e, tremendo de péis e de mãos, não pôde por então falar palavra nenhũa. Porém, passado um grande espaço em que a alteração deste sobressalto ficou quieta, e ele tornou sobre si, pondo os olhos em todos com rosto alegre e palavras severas, preguntou que gente éramos ou que queríamos.
O intérprete lhe respondeo, por mandado de António de Faria, que ele era um capitão daquela gente estrangeira, natural do reino de Sião; e que, vindo de veniaga num junco seu com muita fazenda para o porto de Liampoo, se perdera no mar, do qual se salvara milagrosamente com todos aqueles homens que ali trazia consigo. E que, porque prometera de vir em romaria a aquela terra santa a dar louvores a Deos pelo salvar do grande perigo em que se vira, vinha agora a cumprir sua promessa, e juntamente lhe vinha pedir a ele algũa cousa de esmola com que se tornasse a restaurar de sua pobreza. E que ele lhe protestava que dali a três anos lhe tornaria dobrado tudo o que agora tomasse.
O Hiticou (que assi se chamava o irmitão), despois de estar cuidando consigo um pouco no que ouvira, olhando para António de Faria lhe disse:
— Muito bem tenho ouvido o que disseste, e também tenho entendida a tua danada tenção em que o fusco de tua cegueira, como piloto do inferno, te traz a ti e a essoutros à Côncava Funda do Lago da Noite, porque em vez de dares gracas a Deos, por tamanha mercê como confessas que te fez, o vens roubar. Pois pregunto: se assi o fizeres, que esperas que faça de ti a divina justiça no derradeiro bocejo da vida? Muda esse teu mao proposito, e não consintas que em teu pensamento entre imaginacão de tamanho pecado, e Deos mudará de ti o castigo. E fia-te de mim que te falo verdade, assi me ela valha enquanto viver.
António de Faria, fingindo que lhe parecia bem o conselho que ele lhe dava, lhe pidio muito que se não agastasse, porque lhe certificava que não tinha então outro remédio de vida mais certo que aquele que ali vinha buscar. A que o irmitão, olhando para o céo e com as mãos levantadas, disse, chorando:
— Bendito sejas, Senhor, que sofres haver na terra homens que tomem por remédio de vida ofensas tuas, e não por certeza de glória servir-te um só dia!
E despois de estar um pouco pensativo e confuso c’o que via diante, tornou a pôr os olhos no tumulto e rumor que todos fazíamos no desarrumar e despregar dos caixões; e olhando para António de Faria, que neste tempo estava em pé, encostado ao montante, lhe rogou que se assentasse um pouco a par dele, o que António de Faria fez com muita cortesia e muitos comprimentos. Porém, não deixou de acenar aos soldados que continuassem c’o que tinham entre as mãos, que era escolher a prata que se achava nos caixões de mistura c’os ossos dos finados que também estavam dentro. O que o irmitão sofria tão mal que duas vezes caío esmorecido dum banco em que estava assentado em baixo, como homem que sentia aquilo por ofensa grave.
E tomando pesadamente a continuar com António de Faria, lhe disse:
— Quero-te declarar, como a homem que me pareces discreto, o em que consiste o perdão do pecado, em que tantas vezes me apontaste, para que não pereças para sempre sem fim no derradeiro bocejo da tua boca. Já que me dizes que a necessidade te obrigou a cometeres delito tão grave, e que tens propósito de restituir o que tomares antes que morras, se a possibilidade te der lugar para isso, farás três cousas que te agora direi: a primeira é restituires o que tomares antes que morras, por que se não impida de tua parte a clemência do alto Senhor; a segunda, pedires-lhe com lágrimas perdão do que fizeste, pois é tão feio diante da sua presenca, e castigares por isso a carne continuamente, de dia e de noite; e a terceira partires c’os seus pobres tão liberalmente como contigo, e abrires as tuas mãos com discricão e prudência, por que o Servo da Noite não tenha que te arguir no dia da conta. E por este conselho te peço que mandes a essa tua gente que torne a recolher os ossos dos santos, por que não fiquem desprezados na terra.
António de Faria lhe prometeo que o faria assi, com muitas palavras de comprimentos, de que o irmitão ficou algum tanto mais quieto, inda que não de todo satisfeito. E chegando-se mais para ele, o começou de amimar e afagá-lo com palavras brandas e de muito amor e cortesia, certificando-lhe que, despois que o ouvira, se arrependera muito de ter cometido aquela viagem, mas que os seus lhe deziam que se se tornasse o matariam logo. A que ele respondeo:
— Queira Deos que seja isso assi, porque, ao menos, não terás tanta pena como essoutros ministros da Noite, que, como cães esfaimados me parece que toda a prata do mundo os não poderá fartar.


(Fernão Mendes Pinto em Obra Completa, páginas 169-171)

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