Wednesday, May 19, 2010

A Ciência pode ser encarada sob dois aspectos diferentes

Duas atitudes em face da Ciência

A Ciência pode ser encarada sob dois aspectos diferentes. Ou se olha para ela tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criada, e o aspecto é o de um todo harmonioso, onde os capítulos se encadeiam em ordem, sem contradições. Ou se procura acompanhá-la no seu desenvolvimento progressivo, assistir à maneira como foi sendo elaborada, e o aspecto é totalmente diferente — descobrem-se hesitações, dúvidas, contradições, que só um longo trabalho de reflexão e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações, outras dúvidas, outras contradições.
Descobre-se ainda qualquer coisa mais importante e mais interes­sante: — no primeiro aspecto, a Ciência parece bastar-se a si própria, a formação dos conceitos e das teorias parece obedecer só a necessi­dades interiores; no segundo, pelo contrário, vê-se toda a influência que o ambiente da vida social exerce sobre a criação da Ciência.
A Ciência, encarada assim, aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraque­zas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como um grande capítulo da vida humana social.

A atitude que será aqui adoptada

Será esta a atitude que tomaremos aqui. A Matemática é geral­mente considerada como uma ciência à parte, desligada da realidade, vivendo na penumbra do gabinete, um gabinete fechado, onde não entram os ruídos do mundo exterior, nem o sol nem os clamores dos homens. Isto, só em parte é verdadeiro.
Sem dúvida, a Matemática possui problemas próprios, que não têm ligação imediata com os outros problemas da vida social. Mas não há dúvida também de que os seus fundamentos mergulham tanto como os de outro qualquer ramo da Ciência, na vida real; uns e outros entroncam na mesma madre.
Mesmo quanto aos seus problemas próprios, raramente acontece, se eles são de facto daqueles grandes problemas que põem em jogo a sua essência e o seu desenvolvimento, que eles não interessem também, e profundamente, a corrente geral das ideias.
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(Bento de Jesus Caraça, Conceitos fundamentais da Matemática, Prefácio, Junho de 1941)

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