Saturday, February 25, 2012

Salete e Sebastiana

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Durante um dia e uma noite Salete pensou apenas na sua mãe. Se tivesse sabido, algo que nunca procurara fazer, que ela morrera, Salete ficaria muito triste e choraria de dor. Mas a desgraçada não havia morrido. Então Salete durante vinte e quatro horas apenas sentiu ódio por sua mãe estar viva, por sua mãe estar mais feia, e mais velha e mais preta.
No fim desse período de rancor, um sentimento de pena começou a tomar conta dela. Isso começou a acontecer quando viu uma peça de seda no seu armário, que havia comprado para fazer um vestido. Ela vira sua mãe saindo de uma loja de tecidos ordinários no largo da Carioca, usando um vestido de chita estampado de cores desbotadas. Com certeza fora comprar alguns retalhos para fazer um outro vestido horrendo.
Salete pensava nisso enquanto alisava a peça de seda francesa que tinha sobre o colo. Sua mãe nunca tivera um vestido de seda; nunca sentira o prazer de sentir sobre a pele a maciez da seda, a pobre infeliz.
Uma ideia foi adquirindo contornos definidos em sua mente. Vestiu a saia e a blusa mais simples que tinha em seu guarda-roupa, tirou suas jóias. Carregando um embrulho com a peça de seda, pegou um táxi e mandou que o motorista seguisse para São Cristóvão.
«Que lugar de São Cristóvão?»
«Morr - ah, rua São Luiz Gonzaga.»
Quando chegaram à rua São Luiz Gonzaga, Salete perguntou ao motorista se ele sabia onde ficava a praça Elisa Cylleno.
O motorista não sabia.
«Eu vou indicando para o senhor.»
Rodaram por uma porção de vielas sem encontrar a praça.
«Afinal onde a senhora quer ir exactamente?», perguntou o motorista.
«No morro do Tuiuti.»
«Infelizmente eu não subo em morro, minha senhora. Muito perigoso. Nem a polícia sobe.»
Rodaram mais um pouco. Salete reconheceu a rua Curuzu.
«Pode me deixar aqui», disse.
Da rua Curuzu, ela se lembrava de como ir ao morro.
Chegou ao sopé do morro. Começou a subir, passando pelos barracos, em cujas portas viu as mesmas mulheres da sua infância, colocando roupas em varais para secar, carregando crianças raquíticas no colo, algumas grávidas; molecotes jogando bola de gude no chão de terra; homens de camisa de meia bebendo numa birosca. Todos olhavam para ela, estranhando sua presença.
«Está procurando quem, filha?», perguntou uma velha com uma criança no colo.
«A casa de dona Sebastiana.»
«Fica lá em cima.»
«Eu sei onde é.»
A porta do barraco de madeira, coberto com folhas de zinco, estava fechada. Salete bateu.
A mãe abriu a porta. Não reconheceu a filha.
«Sou eu... mamãe.»
«Salete? Salete?»
Ficaram alguns segundos caladas, a mãe limpando as mãos na saia suja, mexendo os pés calçados de tamancos.
«Trouxe um presente para a senhora.»
«Você não quer entrar...?»
Salete entrou. Ela se lembrava daqueles odores impregnando a casa: cheiros do corpo; mofo, comida rançosa; o fedor da pobreza. Os poucos móveis velhos e estragados pareciam ser os mesmos do seu tempo.
«E os meus irmãos?»
«Joãozinho está preso. Andou se metendo com más companhias. Tião sumiu de casa um dia e nunca mais voltou. Como você.»
«Eu voltei, mamãe. Abra o seu presente.»
Sebastiana abriu o embrulho.
«O que eu vou fazer com uma coisa dessas?»
«Um vestido.»
«Um vestido? Eu andando com um vestido de seda aqui no morro?»
«A senhora vai sair do morro», disse Salete, impulsivamente. «Eu vim buscar a senhora para morar comigo.»
Sebastiana cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
Salete aproximou-se da mãe. Abraçou carinhosamente aquele corpo barrigudo, sacudido pelos soluços.
«Me perdoe, mamãe.»
As duas ficaram chorando, abraçadas. Junto com a dor e o arrependimento que sentia, Salete pensou também que sua mãe estava precisando de um banho.
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