Há quase setenta anos, precisamente no dia 11 de Novembro de 1932, numa altura em que se desenvolviam já os contornos do que viria a ser a segunda guerra mundial, um jovem professor universitário, escreveu um artigo no semanário Liberdade. Esse jovem professor, de 31 anos, chamava-se Bento de Jesus Caraça, e o artigo tinha por título A luta contra a guerra.
No contexto de séria crise internacional que actualmente se vive, parece-me útil e também necessário, nesta homenagem a Bento de Jesus Caraça recordar as suas exactas palavras que, com o passar do tempo, não perderam actualidade. Talvez seja preciso substituir as datas, uma sigla, e pouco mais. Tudo o resto se mantém vivo como se tivesse sido escrito hoje.
Escrevia, então, Bento de Jesus Caraça, no seu artigo A luta contra a guerra:
Um semanário francês publicava, há alguns meses, um desenho que, em síntese feliz, ilustrava o panorama político de então: na clínica do Doutor S. D. N. um doente – o mundo – é examinado pelo médico; este olha com terror para a língua do paciente, uma enorme língua entumescida sobre a qual se vê um canhão, e aconselha os comparsas da clínica que se comprimem à porta – não se aproximem! a língua está carregada!
De então para cá, a situação não se tem alterado nas suas linhas fundamentais, antes estas se têm demarcado com maior intensidade – o doente continua padecendo do mesmo mal, dia a dia agravado, e da boca do médico não mais têm saído do que débeis conselhos gaguejados: cuidado! a língua está carregada! – confissão clara da sua impotência para curar.
Catorze anos após o termo desse acesso de loucura que precipitou a humanidade num abismo de horror, encontramo-nos novamente na iminência de um acesso maior, estamos à beira de um abismo mais fundo. E para esse abismo rolaremos todos se, num esforço colectivo, não nos unirmos para dizer – NÃO! mas dizer – NÃO! com uma vontade firme, aquela vontade do homem forte e consciente que de antemão prevê as consequências e de antemão as aceita em toda a sua extensão e em toda a sua inteireza.
O tomar essa atitude exige, antes de mais nada, um sério trabalho interior, um trabalho de revisão de ideias e de valores morais. E não é sem esforço e sem sofrimento que esse árduo trabalho pode ser levado ao fim; pelo caminho, e por efeito de uma análise impiedosa de todos os factores do problema, aparecerão como devendo ser abandonadas muitas ilusões, muitas ideias que até aí pareceriam fazer parte integrante do nosso ser moral. Pois bem! Que haja a coragem de as abandonar e se ao cabo aparecermos outros homens – tanto melhor!
Mas é só depois de conseguida essa harmonia interior sem a qual é ilusória e inconsistente toda a tentativa de acção, que pode ser útil e profícua a projecção da vontade sobre o meio ambiente. Actuar, sim, mas com um plano; nada de esgrimir contra moinhos; alcançar os pontos de enraizamento do mal; abandonar o trapo vermelho para atingir a mão que o manobra.
Só assim a multidão dos pacifistas deixará de ser, na frase justa de Einstein, um rebanho de carneiros lamurientos num redil. E só assim esse rebanho deixará em breve de fornecer abundante carne para os canhões, esses canhões de cujo fabrico e venda as organizações capitalistas internacionais sabem tirar, com que mestria!, os grossos lucros que lhes avolumam a bolsa.
A luta contra a guerra comporta muitos e variados problemas de ordem prática; é impossível, num artigo de jornal, fazer deles sequer uma enumeração, mesmo incompleta.
Quero apenas referir-me, por agora, a um aspecto da questão – o papel que nessa luta desempenham, ou virão a desempenhar, os intelectuais.
Não é brilhante, está mesmo extremamente longe disso, a sua folha de serviços nesse particular. O exemplo da última guerra é, a esse respeito, esmagador. Salvo um pequeno número de espíritos livres e independentes – Romain Rolland acima de todos – o seu fracasso foi completo. Em vez de lançarem na balança todo o peso do seu prestígio para procurarem evitar o desencadeamento da catástrofe e pôr ordem num caos de loucura, usaram desse mesmo prestígio para activar a fogueira, para aumentar a desordem. Onde deviam elevar-se, aviltaram-se, ao desempenho de uma missão nobre e humana preferiram a traição.
Está, ao menos, a situação mudada no presente? Vêem-se, porventura, sinais claros e precisos de um propósito de resgatar um passado escuro? A verdade deve dizer-se, sempre e acima de tudo, e a verdade é – não! Existem, sem dúvida, núcleos apreciáveis de homens firmes, de “homens de boa vontade” que, na luta contra a guerra, põem o melhor da sua inteligência e da sua actividade – o recente congresso de Amsterdam é disso uma prova bem patente – mas, infelizmente, a maioria, a grande maioria dos intelectuais apresta-se para uma nova renegação do espírito. Se uma guerra estalar, e nunca estivemos tão perto dela, veremos de novo surgir, por esse mundo, milhares de fáceis heróis de escrevaninha, a bolsar as mesmas torrentes de mentiras que levem à frente da batalha – os outros… e lhes assegurem a eles cómodas situações à retaguarda.
O mundo está, como estava em 1914, governado por homens inferiores, caricaturas de homens, e o que eles governam não é uma sociedade humana – é uma caricatura de sociedade humana.
E será assim, enquanto homens novos não tomarem a direcção do mundo para fazer dele uma sociedade de homens livres.
Que todos se apercebam bem disto – no momento que passa, a trincheira da luta pela Humanidade é a trincheira da luta contra a guerra. É a hora de falar claro e de cada um escolher a sua posição.
A minha está escolhida há muito tempo.
Assim terminava o artigo de Bento de Jesus Caraça.
Devo dizer que tenho sempre um embaraço quando intervenho em homenagens a Bento de Jesus Caraça. Por um lado, não tenho os dons oratórios e conhecimentos que estejam à altura de uma das nossas mais importantes figuras do século XX. Mas, por outro lado, há uma enorme dívida de gratidão que tenho, que todos nós temos, para com o professor, para com o homem de ciência, de cultura, e de acção, que ele foi. E é ele, Bento de Jesus Caraça, que da já distante primeira metade do século passado, nos impõe o dever de falar, porque temos que lançar na balança todo o peso do nosso prestígio (por pequeno que seja o de cada um) para procurar evitar o desencadeamento da catástrofe e pôr ordem num caos de loucura.
Parece que a situação internacional mudou radicalmente de há três meses para cá. O futuro o dirá, mas, provavelmente, mudou mesmo. Todavia, sem querer minimizar a profunda gravidade do sucedido em 11 de Setembro, há que assinalar que a História não começou nessa data.
As próprias autoridades do país vítima dos atentados do dia 11 de Setembro último classificaram-nos como actos de guerra. Não me sinto capaz de discutir tal designação. Lembro apenas que, no decurso da segunda guerra mundial foram lançadas, pelos Estados Unidos, bombas atómicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki que destruiram bens e pessoas em quantidade muito maior do que agora, constituindo um precedente que, felizmente, até ao presente momento, não teve sequência. Este foi apenas um precedente extremo do ocorrido há três meses. Muitos outros exemplos se poderiam dar.
Mas há, concerteza, dois aspectos novos nos atentados de 11 de Setembro. Por um lado, a envolvente técnica e a espectacularidade radicalmente inéditas. Por outro lado, o facto de terem atingido cidades do país mais poderoso do planeta, quando, até aí, só tinham sofrido bombardeamentos cidades de países fracos ou militarmente muito debilitados: cidades como Bagdad, Belgrado ou a capital do Panamá, para falar, apenas, em alguns casos mais recentes.
Esses dois aspectos não justificam, em minha opinião, que se arraste todo o mundo para guerras de consequências totalmente imprevisíveis.
O pretexto que tem servido de justificação para estas guerras tem sido o desmantelamento do terrorismo. Ora, o terrorismo dos pobres ou que, por qualquer via, tem origem no terceiro mundo é, no essencial, um subproduto da exploração, da miséria que ela acarreta, da ingerência económica e militar e, fundamentalmente, da guerra. Fazer uma guerra global dita para combater o terrorismo é, para todos os efeitos, dar sequência a um ciclo infernal que conduzirá, inevitavelmente, a mais perdas de vidas humanas e bens materiais. A guerra não é, portanto, uma solução para acabar com o terrorismo mas é, pelo contrário, uma das suas raízes.
As guerras actuais, nomeadamente esta que tem sido conduzida contra o povo do Afeganistão, são, em si mesmas, formas de terrorismo. Com a agravante de serem conduzidas por países ricos, poderosos técnica e militarmente, esmagadoramente poderosos, países que, por isso mesmo, têm os meios para resolver os problemas pela via pacífica.
O poderio militar que bombardeia sem possibilidades de defesa tem sido de tal maneira avassalador que as populações aterrorizadas, verdadeiramente aterrorizadas, são obrigadas a fugir para campos de refugiados, muito longe dos locais onde viviam. E acontece que, mesmo antes de dispararem um único tiro, estes ataques, ditos cirúrgicos, já mataram muito mais gente do que aquela, também inocente, que morreu em 11 de Setembro deste ano. É que, muitos desses fugitivos acabam por morrer de frio, fome e doenças nos campos de refugiados. Não é isto uma forma suprema de terrorismo?
Há muitas coisas estranhas em toda esta actividade bélica, que, aliás, estão documentadas na imprensa, em livros, na internet, em vídeo. Todos nós temos o dever de procurar a informação para, tal como dizia Bento de Jesus Caraça, alcançar os pontos de enraizamento do mal e abandonar o trapo vermelho para atingir a mão que o manobra.
A este propósito, assinalo dois factos que toda a gente conhece mas que acabam sempre perdidos nas montanhas de informações com que, também nós, somos bombardeados.
Primeiro facto. Os aliados de ontem (melhor seria chamar-lhes cúmplices) são os inimigos de hoje, mas os povos é que sofrem as consequências. O que está a suceder agora, sucedeu já, por exemplo, no Panamá, onde bairros inteiros foram arrasados a pretexto de um ajuste de contas entre antigos comparsas. Isto deve servir de lição no que diz respeito à escolha dos aliados. É que, quem se mete com criminosos e assassinos, acaba manchado de sangue e, o que é mais grave, envolve no processo triturador pessoas completamente inocentes.
Segundo facto. Bloqueiam-se, agora, contas bancárias que se dizem financiar o terrorismo. Mas nada se diz ou faz a propósito dos capitais que circulam e que estão envolvidos com o crime organizado, o tráfico de droga, o tráfico de armas, a lavagem de dinheiro. Os paraísos fiscais continuam intocáveis contra a vontade das populações.
A verdade é que o que está por detrás de tudo isto são os grandes interesses geoestratégicos com particular relevância para aqueles que se prendem com o petróleo. É necessário pôr um travão a este colonialismo do século XXI, afinal tão parecido nas intenções com o seu avô do século XIX, mas diferente nos meios técnicos militares, muito mais poderosos agora.
É sempre tempo de dizer – Basta! E creio que essa é uma forma de, hoje, prestarmos homenagem a Bento de Jesus Caraça.
Jorge Rezende. Lisboa, 11 de Dezembro de 2001