Quando preparava a Fotobiografia de António Aniceto Monteiro interessei-me, como era lógico, por obter documentos relativos a Aureliano de Mira Fernandes. Assim, fiz o que era meu hábito: utilizei a lista telefónica, então sob a forma electrónica de acesso livre pela internet, para saber a morada dos familiares. No dia 28 de Fevereiro de 2006, uma 3ª feira, com uma lista de mais de uma dezena de nomes e números, fui fazendo telefonemas até encontrar alguém da família que me indicou a filha mais velha de Mira Fernandes – Maria Adelaide Mira Fernandes – que morava na Rua Luís de Camões, 65, 2º D, em Algés. Falei nesse mesmo dia com ela por telefone e disse-lhe quem era e o que pretendia.
No domingo seguinte, dia 5 de Março, de manhã, quando há menos trânsito, fui lá a casa, de surpresa. Para meu espanto, a senhora, já com cerca de 95 anos, abriu-me a porta sem qualquer problema ou desconfiança, coisa que nem sempre sucedeu com gente muito mais nova. Conversámos e mostrou-me as fotografias que possuía – únicas recordações que tinha do pai, segundo disse. Estava numa situação difícil porque, além de ter uma prótese numa anca, tinha o filho no hospital há dois anos depois de ter sofrido um AVC, tendo ela que se revezar com a nora, todos os dias, para o apoiar. Disse-lhe então que lhe telefonaria mais tarde para ir lá digitalizar as fotografias porque tinha que combinar primeiro com quem me iria ajudar a transportar o computador e o digitalizador. Podia ter tentado pedir-lhe as fotografias emprestadas, para as devolver no dia seguinte, depois de digitalizadas, mas preferi a penosa alternativa, para não lhe dar a ideia que pudesse apropriar-me delas ou, eventualmente, perdê-las. Não seria novidade, visto que foi isso que sucedeu, segundo me disseram, na Academia das Ciências, com as que foram a caminho das tipografias – desapareceram. Também desejava que não tivesse qualquer receio de me mostrar todos os documentos que possuía – mesmo que fosse uma carta de Einstein eu não a retiraria daquela casa.
No dia 15 acordámos em que iria no dia seguinte, uma 5ª feira, de manhã. Levámos como presentes um vaso com begónias e
uma fotocópia de uma carta de Mira Fernandes para Ruy Luís Gomes do final de 1934 – «...sou Sôgro, ha um mês! Sôgro! Gosto muito do meu Genro, gostei muito que a minha Filha se casasse, mas entendo que a palavra fatal só devia ter feminino!». E agora, setenta anos passados, ali estava, à minha frente, aquela que tinha «provocado» esta «perturbação» no pai... Enquanto fazia o meu trabalho, conversámos...
Há muitos anos aposentada, Maria Adelaide tinha sido funcionária numa repartição. No tempo dela não era costume as raparigas serem incentivadas a tirar cursos superiores. Mas era uma republicana como o pai. Em mais nova devia ter sido uma pessoa alegre. E era ousada como se pode ver pelo seguinte episódio que me contou. Em 10 de Novembro de 1961, Hermínio da Palma Inácio e outros desviaram um avião da TAP e sobrevoaram Lisboa lançando milhares de panfletos. Maria Adelaide apanhou vários na rua, escondeu-os na roupa e distribuiu-os na repartição.
Contou-me que o pai tinha participado na revolução de 5 de Outubro de 1910 e que chegara a ser convidado para o governo republicano, tendo recusado.
Mira Fernandes era amigo de José Manuel
Sarmento de Beires, o aviador que realizou em 1924 o raid aéreo Lisboa-Macau conjuntamente com Brito Pais e Manuel Gouveia, e era irmão de
Rodrigo Sarmento de Beires que viria a ser professor catedrático de matemática na Universidade do Porto. Um dia quis convencer Mira Fernandes, sem sucesso, a deixá-lo levar as duas filhas adolescentes a dar uma volta de avião... Este episódio aconteceu antes de 1928, porque nessa data este
Sarmento de Beires, militar e aviador, que pertencia ao Partido Republicano, participou numa revolta militar e acabou por passar à clandestinidade. Envolveu-se na guerrilha e foi preso quatro anos depois,
tendo sido visitado na cadeia por Ruy Luís Gomes.
Mais tarde, no Brasil, no exílio, viria a encontrar António Aniceto Monteiro. Anos depois, o irmão do aviador,
Rodrigo, que politicamente estava muito afastado de José Manuel, ainda assim apoiou Ruy Luís Gomes durante as perseguições que o fascismo lhe moveu, como é sabido. Contou-me o Eng. Manuel Beires que, talvez depois de 1958,
António Luiz Gomes, já muito idoso, foi, a pé, da sua casa, na Rua da Restauração, à Arca d’Água, agradecer a Rodrigo Sarmento de Beires essa solidariedade prestada ao filho. Quando Sarmento de Beires lhe propôs chamar um táxi para o regresso, o velho político dos primórdios da República agradeceu mas disse que preferia regressar como tinha ido: a pé...
Conto isto para mostrar não só a «fibra» destas pessoas mas também que
todos eles se conheciam muito bem, eram amigos, solidários, e que tinham interesses e
actividades comuns que iam da Ciência à Política. Mira Fernandes conhecia perfeitamente Ruy Luís Gomes e teve grande influência tanto nele como em Bento de Jesus Caraça, de quem foi o padrinho do primeiro casamento.
Mira Fernandes, tal como Ruy Luís Gomes, mantinha correspondência científica com personalidades estrangeiras, como
Levi Civita, caso muito raro na época. Melhor do que descrito por mim, o relacionamento científico entre Mira Fernandes, Levi Civita, Ruy Luís Gomes, e outros, está registado em vários documentos como, por exemplo, o artigo de José Morgado «O professor Ruy Luís Gomes e o Movimento Matemático Português».
Para meu espanto e meu desapontamento, Maria Adelaide disse-me que tinha destruído todos os papéis do pai que possuía porque não queria que um dia pudessem servir «para embrulhar sabão» nalguma loja. Mas antes de tal destruição ter acontecido já alguém tinha feito «desaparecer» uma carta de Albert Einstein...
Recordo Maria Adelaide como uma mulher inteligente, afável e de uma infelicidade serena. Não a voltei a ver. Depois de lá ter ido a casa, mandei fazer umas magníficas reproduções em papel das fotografias do pai e enviei-lhas como agradecimento. Ficou muito sensibilizada, distribuiu-as pela família, telefonou frequentemente. Foi assim que conheci a irmã, muito mais nova, Maria Margarida, que me confirmou não haver mais documentos relativos a Aureliano de Mira Fernandes. Ficou-me a impressão que ele, além do seu amor paterno, mantinha com as filhas uma relação de muita proximidade e até de cumplicidade.
Jorge Rezende, Junho de 2009